A Razão que Resta

Donald Trump venceu, afinal, as eleições presidenciais do colosso militar, maior produtor de petróleo, um dos maiores produtores industriais e agrícolas, maior mercado consumidor, e principal centro inovador do Planeta.

Venceu contra a mídia hegemônica, que fez de tudo para desqualificá-lo. Venceu contra os intelectuais e artistas, que viam em Hillary Clinton um “mal menor”. Venceu contra os interesses de empresas transnacionais incomodadas com a sua retórica protecionista. Venceu, enfim, contra metade do eleitorado, especialmente contra negros, latinos e muçulmanos, alarmados com o seu racismo, xenofobia e islamofobia. Mas terá Trump vencido contra todas as probabilidades? De modo algum.

A vitória de Trump é mais um ato do enfraquecimento que vem marcando, nos últimos anos, as chamadas democracias ocidentais, empobrecidas pela “banalização” da política a que se refere Mário Vargas Llosa. Consumação de um processo em que “a publicidade e seus slogans, lugares-comuns, frivolidades, modas e manias ocupam quase inteiramente a atividade antes dedicada a razões, programas, ideias e doutrinas”, nas palavras do peruano Prêmio Nobel de literatura (A Civilização do Espetáculo, 2012, p.44).

A mídia dos Estados Unidos resmunga, esbraveja e esperneia, mas conviverá doravante com um presidente que não desejou, embora o tenha produzido (é bom lembrar que Trump tornou-se célebre como apresentador de “O Aprendiz”). Talvez a oligarquia de lá aprenda com a oligarquia brasileira a difamar, caluniar, julgar e condenar presidentes, nas rádios TVs, jornais e revistas, para enfim destituí-los, à revelia da lei. Contudo, isso é muito pouco provável. Será mais fácil celebrar a paz, pragmaticamente, e seguir faturando, em conluio com os novos e velhos fantoches políticos. Business as usual, é a aposta de sempre nas terras do Tio Sam.

Ademais, os meios de comunicação que em tese abominam Trump são os grandes promotores do consumismo, imediatismo, hedonismo e individualismo, caldo de cultura onde fermentaram os votos do presidente eleito. A imprensa, cada vez mais centralizada, homogênea e superficial, vêm ao longo de décadas entorpecendo e enganando povo. É ela que abre espaço a políticos e empresários farsantes, suprime o contraditório, alimenta o mau gosto, fomenta a intolerância, mascara abusos de poder, exalta o militarismo, promove produtos nocivos às pessoas e ao meio ambiente e prestigia opiniões infundadas em prejuízo dos argumentos sólidos, com total desfaçatez. Agora, tem que aceitar a sua cria natural.

E o que tem feito o establishment bipartidário, esse curioso animal político estadunidense? Com diferenças programáticas mínimas, na teoria, e irrelevantes, na prática, Republicanos e Democratas têm representado os mais ricos dentre os ricos, com indisfarçável desprezo pelo cidadão comum, pelos pobres, pelos marginalizados, em um sistema socioeconômico onde aos “vencedores” cabem todos os ganhos, e aos “perdedores”, o abandono total. Não é à toa que Joseph Stiglitz, Nobel de Economia e ex-economista chefe do Banco Mundial, vem repetidamente denunciando a apropriação do sistema político do seu país pelos endinheirados, resultando em devastadora concentração de renda e poder: “os que estão no topo [do poder econômico e político]”, diz ele, “têm aprendido como tirar dinheiro dos outros por meios dos quais estes nem se dão conta” (The Price of Poverty, 2012, p.32).

Há quem diga que Trump foi eleito por um bando de fanáticos e milhões de eleitores “irracionais”. É assim mesmo: sempre que o voto popular perturba o sossego das classes dominantes, ameaçando uma ordem institucional frágil e obsoleta, reaparece essa acusação de irracionalidade, que nada explica, mas poupa aos derrotados discutir verdades inconvenientes. E a verdade inconveniente, agora indisfarçável, é que há, nos Estados Unidos, uma maioria que se sente abandonada pelos políticos e pela elite empresarial, tais como as mães e pais de meia-idade desempregados e subempregados, bem como seus jovens filhos universitários, tremendamente endividados e sem perspectivas profissionais à altura de suas demandas.

Elegeram Trump pessoas que nunca sonharam o “sonho americano”, mas, principalmente aquelas que um dia sonharam e acordaram de súbito para a realidade sombria das microempresas falidas, fábricas fechadas, demissões em massa, hipotecas vencidas, casas tomadas à força, burnout, doenças graves e mortes por overdose, sem direito a planos de saúde ou a auxílio funeral. Pessoas para quem a candidata das corporações, bancos e fundos de investimento nunca representou uma opção real; que viram em Hillary Clinton – com razão – apenas mais do mesmo. Pessoas cuja racionalidade foi corrompida pelas sucessivas desilusões políticas, pelas expectativas frustradas, pela incerteza e ansiedade permanentes, em lugar da antiga crença em dias melhores.

Os eleitores de Trump são racionais: só não votaram com a razão iluminada; votaram com a razão que lhes resta.

2 ideias sobre “A Razão que Resta

  1. Paulino

    Professor, sua análise é muito esclarecedora em face do que a mídia vem pontuando acerca de Trump, pois voltou-se mais à ótica do eleitor frustrado, porém sem opção melhor em vista. Obrigado!

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